sábado, 21 de janeiro de 2012

Liberdade Liberdade

Liberdade Liberdade, texto de Flávio Rangel e Millôr Fernandes, é um marco da história do teatro brasileiro. Encenada em 1965 foi, ao lado do Show Opinião, uma das primeiras reações da cena teatral e cultural brasileira ao Golpe Militar de 1964. Com direção do próprio Flávio Rangel e elenco formado por Paulo Autran, Tereza Rachel, Nara Leão e Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, a peça foi um enorme sucesso de público e crítica.

Os autores de Liberdade Liberdade construíram a dramaturgia do espetáculo a partir de uma coletânea de textos sobre a liberdade em diversos momentos da história da humanidade. Em cena personagens como Sócrates, Jesus Cristo, Garcia Lorca, Abraham Lincoln, Anne Frank, Tiradentes, entre outros. Mesmo para censores quadrúpedes como os da ditadura brasileira, que apreendiam romances como A Capital, de Eça de Queiroz, pensando se tratar do livro homônimo de Marx, devia ser complicado censurar textos do mártir da inconfidência ou de um presidente dos Estados Unidos...

Com uma dramaturgia épica, mas longe de ser uma encenação verborrágica e recitativa, Liberdade Liberdade era um espetáculo vibrante, musical, com ótimos atores, banda ao vivo e um vasto repertório de canções, de Summertime a Marcha da Quarta Feira de Cinzas (em interpretações magistrais de Nara Leão), passeando por marchas de carnaval, sambas de breque, xotes nordestinos, canções da guerra civil espanhola e spirituals do Gospel norteamericano.

Recentemente recebi um belo presente de amor , via Correios: um CD com o áudio integral do espetáculo encenado em 1965. Um registro lindo, precioso, raridade, goiabada cascão em caixa. Ouvi no carro ao lado do meu pai, que assistiu à peça na época e lembrava trechos inteiros de cor . E pude repassar na memória a minha história pessoal com esta peça, que marcou definitivamente o momento da vida em que me descobri homem de teatro.

Em 1996, eu estudava no segundo grau do Colégio Pedro II, Unidade Centro, no Rio de Janeiro. Escola pública federal e centenária, o Pedro II tem uma forte tradição humanista e de politização que atravessou gerações de professores e estudantes até os dias de hoje. Dos tempos do antigo curso Clássico, o Colégio preservou algumas esquisitices curriculares do bem, como aulas de latim, grego, filosofia e música obrigatórias. Mas também aberrações como uma matéria chamada geometria descritiva (ou desenho geométrico, não lembro direito) .Era um negócio esquisitíssimo, meio desenho meio matemática, uma inutilidade completa. Nosso desconforto com a chatice do negócio era evidente, o índice de evasão nestas aulas era altíssimo.

Até que pintou um professor desta matéria, o Alcir. que era um sujeito muito bacana. Negro, boêmio, formado em Belas Artes, era bom de papo e passava boa parte da aula falando de cinema, política, namoro e outros temas bem mais interessantes que os diedros e poliedros da geometria descritiva. Tomávamos cerveja e jogávamos sueca juntos no boteco atrás da escola, conspirávamos a candidatura dele pra diretor do colégio - ele concorreu, com apoio maciço dos alunos, mas não ganhou. Com a convivência e a intimidade, a gente foi falando pra ele o quanto a gente detestava a matéria que ele lecionava, que era uma contradição um professor tão legal uma aula tão insuportável. Alcir tentava defender a matéria, fazer a gente ver a beleza daqueles diagramas abstratos, a cerveja rolava e ele não convencia ninguém, acho que nem a si próprio.

Um dia ele chegou para dar aula com um sorrisinho no canto da boca e fez uma proposta irrecusável: os alunos que não quisessem mais assistir as aulas de geometria descritiva (ou desenho geométrico), poderiam fazer, no mesmo período, uma atividade alternativa: um curso de teatro! O filho dele era recém - formado em um curso profissionalizante de artes cênicas, queria ganhar experiência como professor e topava encarar uma turma de adolescentes em busca de uma alternativa para as maçantes aulas de desenho geométrico (ou geometria descritiva).

Eu e uma boa parte da turma topamos a parada, e começamos o curso de teatro. Começamos a trabalhar com dois textos: Aurora da Minha Vida, de Naum Alves de Souza – um belíssimo texto que contava a história de uma turma de adolescentes no último ano da escola – e o próprio Liberdade Liberdade. Acabamos mais atraídos pelo segundo, pelo conteúdo político e pela dramaturgia sem personagens fixos que permitia que todos – éramos uns 30 ao todo – entrassem em cena. No Colégio havia uma semana cultural no fim do ano, e nessa ocasião estreamos nossa versão de Liberdade Liberdade em uma minitemporada que obteve grande sucesso de público e crítica na comunidade escolar.

Anos depois, já fazendo parte do Grupo Tá Na Rua e tendo escolhido o teatro, senão como profissão mas como meio de difusão de ideias e desenvolvimento de uma linguagem para intervir na sociedade , escrevi uma cena para o espetáculo Memórias do Tá Na Rua em que homenageávamos o diretor Flávio Rangel encenando alguns fragmentos de Liberdade Liberdade. Este texto, sempre atual, abriu na minha cabeça a possibilidade de pensar o teatro e a dramaturgia de uma forma aberta, livre das convenções do realismo psicológico, me revelando um teatro mais próximo das características e necessidades do povo brasileiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário